segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

BELLUZZO ESCREVE NA CARTA CAPITAL

Luiz Gonzaga Belluzzo: Não percamos o espírito crítico

As eleições presidenciais de 2002 foram realizadas sob um clima de terror especulativo. Os mercados e seus porta-vozes projetaram cenários apavorantes para os quatro anos de governo Lula. O risco Brasil foi a 2.400 pontos base, descolou da pontuação dos outros emergentes.

Por Luiz Gonzaga Belluzzo, na revista CartaCapital

A transição, para surpresa de muitos e decepção de outros, foi feita com habilidade e prudência. Já em 2003, no início do mandato presidencial, a economia mundial apresentava forte aceleração. A partir de então, a abundante liquidez financeira e o crescimento vigoroso do comércio mundial promoveriam uma formidável mudança no balanço de pagamentos. Todos os indicadores econômicos melhoraram nos últimos sete anos. A vulnerabilidade externa foi afastada pelo boom de commodities e pela diversificação dos mercados e a dívida líquida do setor público encolheu escorada numa administração fiscal cautelosa e na acumulação de reservas em moeda estrangeira. Por tudo isso, a economia brasileira reagiu bem ao choque negativo de crédito que lhe foi imposto pela crise financeira internacional e promete um último ano de mandato venturoso.

Antes, porém, de me aventurar em conjeturas sobre a era pós-Lula, peço ao leitor paciência para tolerar algumas considerações sobre o fenômeno Luiz Inácio. Digo fenômeno sem o propósito de mistificar o humano que se esconde por detrás do mito. O humano Luiz Inácio tem o rosto de um povo esperançoso, não raro ingênuo em suas crenças, que descobriu ter realizado uma de suas esperanças na eleição do metalúrgico do ABC, nascido em Garanhuns.

Insisto no “descobriu” porque o povão resistiu tenazmente à ideia de colocar um dos seus na Presidência da República. Mas a velha e boa democracia, a despeito de seus tropeções e percalços nativos e (por que, não?) mundiais, acabou por conceder aos brasileiros das classes ditas subalternas a oportunidade de testar suas competências. Hoje o povão celebra a si mesmo ao conceder a Lula e a seu governo uma aprovação majoritária.

É de justiça lembrar que os fundamentos das políticas sociais modernas que o governo Lula ampliou e desenvolveu decorrem do espírito da Constituição de 1988. O desenvolvimentismo brasileiro do pós-guerra descuidou das questões das desigualdades e dos direitos sociais e econômicos dos cidadãos, em contraste chocante com o que ocorria no mundo desenvolvido. O processo de urbanização brasileiro juntou crescimento rápido, especulação imobiliária, aumento da desigualdade e marginalização crescente dos contingentes “expulsos” de seus pagos.

Não é difícil entender que as criaturas da urbanização patológica tivessem projetado seus espectros no cotidiano vivido pelos brasileiros nos dias de hoje. A desregrada ocupação do solo, a favelização, a desconstituição familiar e a precariedade do sistema educacional estão na raiz da violência urbana – organizada e desorganizada – das já não inesperadas tragédias de verão, dos fracassos brasileiros nas olimpíadas de matemática e das interpretações de textos. A persistência dessas mazelas não desenham o futuro que muitos antecipam ao projetar um desempenho brilhante da economia. Esse futuro é, sim, possível, mas a experiência histórica comprova que o sucesso econômico está longe de assegurar o progresso social.

Primeiro, a economia. É bom notar que os críticos não liberais do desenvolvimentismo já haviam apontado a exaustão do chamado “modelo de substituição de importações”, sublinhando, aliás, alguns desafios importantes que estavam postos já em meados da década dos 70: 1. A criação dos instrumentos e instituições de mobilização da poupança doméstica, particularmente para suportar o financiamento de longo prazo. 2. A reestruturação e modernização da grande empresa de capital nacional e de suas relações com o Estado e com os mercados globais. 3. A constituição do que Fernando Fanjzylber chamava de “núcleo endógeno de inovação tecnológica”.

A conquista da estabilidade, os cuidados com a regulamentação dos mercados e o papel das instituições financeiras públicas na reação à crise financeira mostraram que o Brasil está pronto para avançar na modernização e no aperfeiçoamento do seu sistema financeiro em que convivem virtuosamente bancos privados nacionais, estrangeiros e o sistema financeiro público.

Também é importante para o fortalecimento da economia a política de formação de grupos nacionais aptos a participar do jogo da concorrência global e a funcionar com centros geradores de tecnologia e demanda de peças, componentes e equipamentos produzidos no País.

Há que ficar atento, no entretanto, para a advertência do filósofo e economista alemão do século XIX: “Tudo o que é sólido se desmancha no ar”. Ele falava da história e de seus ardís, das certezas que são desmentidas impiedosamente pelos acontecimentos que disfarçam sua iminência. Foram tais ardis que desacreditaram os brasis dos doutores, desde a Colônia até a República.

Os anos 90 e a globalização trouxeram novas questões para o cardápio de obstáculos formidáveis que lançam reptos ao futuro do Brasil: a nova configuração geoeconômica, com a presença da China e de seus parceiros asiáticos no mercado mundial de manufaturas, ameaça confinar o País a uma especialização na produção e exportação de commodities. A benção do pré-sal pode se transformar numa maldição para a economia urbano-industrial brasileira, com graves consequências sobre as conexões produtivas, afetando de maneira perversa o emprego e a renda dos assalariados.

Recado para os pessimistas: chamada “doença holandesa” não está inexoravelmente inscrita nos destinos do País. Muito ao contrário: a perspectiva de rendição dos constrangimentos externos, engendrada pela nova divisão internacional do trabalho e pelas promessas do pré-sal, gerou as condições para que o Brasil possa replicar a experiência singular do desenvolvimento dos Estados Unidos. É possível combinar uma excepcional dotação de recursos naturais e a exportação de commodities com o estímulo à expansão industrial. Mas os governos pós-Lula ainda terão de navegar em águas perigosas. Diante das incertezas da finança internacional e da evolução do comércio mundial, o vício do câmbio valorizado não ajuda a afastar o risco de turbulências no futuro próximo, a despeito das reservas elevadas.

Agora as políticas sociais: discordo dos que consideram o Bolsa Família e outras ações do governo Lula, como o Pro-Uni “assistencialistas”, para não falar da política de valorização do salário mínimo. Os avanços na redução das desigualdades e o incremento das oportunidades foram significativos diante do horror da miséria absoluta e da fome, do bloqueio sistemático do ensino superior aos “de baixo”. Mas ainda é pouco, se considerados os anseios da liberdade, da igualdade e da dignidade do homem contemporâneo.

Diante da admiração internacional e do sucesso doméstico alcançados pelo presidente corre-se o risco de sufocar com aplausos o espírito crítico. As políticas públicas e sociais dos últimos 15 anos, foram, sim, impulsionadas por um ambiente democrático, malgrado o nariz torcido de muitos praticantes da utopia. Isso ocorreu na contramão do ethos neoliberal imperante no mundo nos últimos anos que tratou de promover a ética intolerante dos vencedores, aquela que não deixa ao desamparado, ao inferiorizado, senão a alternativa de massacrar a própria autoestima. “A individualização” do fracasso, inscrita nos pórticos da concorrência desaçaimada, não permite ao derrotado compartilhar com os outros um destino comum provocado pela desordem do sistema social. O reconhecimento social é uma preciosa forma de remuneração não monetária. E essa retribuição torna-se cada vez mais escassa quando o desemprego e a desigualdade prosperam em meio a uma eufórica comemoração do sucesso do indivíduo.

Não cuidamos aqui apenas da desigualdade econômica, mas das carência educacionais e culturais que assolam o País. O velho desenvolvimentismo criou uma resistência nos dirigentes brasileiros a cuidar da produção de bens culturais como um fator de progresso econômico e social. Se a memória não me atraiçoa, arrisco dizer que Adorno afirmava que “sem compreensão não há liberdade.”

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