quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

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José Graziano:Com fome não haverá um futuro sustentável

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Quando se coloca na balança uma criança subnutrida, o que está sendo pesado na verdade não é apenas um organismo enfraquecido, mas a síntese de uma lógica tão nefasta quanto a que derruba florestas, sopra destruição e exclui a possibilidade de vida digna a bilhões de pessoas em todo o mundo. A consciência do século XXI não pode mais negligenciar que, enquanto houver fome no mundo, não haverá futuro sustentável.

Nada que se confunda com a produção sistemática de excluídos resultará em equilíbrio duradouro. As respostas aos desafios que ameaçam a humanidade não podem mais repetir o enfoque segmentado predominante no padrão de desenvolvimento do século XX que nos deixou como legado impasses sociais e ambientais. Elas dependem, necessariamente, do diálogo entre as demandas sociais, econômicas e ambientais.

A mudança climática atinge populações pobres, institucionalmente desamparadas e com menor capacidade de reagir a eventos desestabilizadores. Enquadram-se aí, por exemplo, os contingentes excluídos do mercado e os pequenos produtores rurais. Em quase todas as regiões do mundo, populações encurraladas pela fome e a pobreza ocupam áreas de risco e figuram entre as principais vítimas de desastres ambientais acentuados por fenômenos como o El Niño e La Niña.

A mudança climática também aumenta a intensidade e imprevisibilidade de desastres climáticos. As consequências já são visíveis, por exemplo, no aumento do custo de seguros agrícolas e na escassez de água que afeta algumas regiões do mundo e se torna a principal limitante à expansão agrícola. Ademais, a incerteza relacionada ao clima contribui para a volatilidade dos preços dos alimentos.

Para 2050, a FAO prevê que a produção agrícola dos países em desenvolvimento caia entre 9% e 21% por conta do aquecimento global.

Mesmo um aumento relativamente pequeno da temperatura média global pode ter impactos significativos na segurança alimentar mundial porque causaria uma queda de produtividade e inutilizaria até 110 milhões de hectares de terra, principalmente nas zonas mais próximas à linha do Equador, onde estão a maioria dos países em desenvolvimento.

Por outro lado, a população mundial cresce o equivalente a uma Etiópia por ano (80 milhões de pessoas). Em 2050, a humanidade somará 9 bilhões de bocas. Para garantir seu abastecimento, a FAO prevê a necessidade de se agregar uma Austrália agrícola à oferta mundial de alimentos a cada ano. Não há, portanto, nenhum malthusianismo em reconhecer que a mudança climática pode ameaçar a segurança alimentar.

No entanto, há terra suficiente, bem como tecnologia e conhecimento disponíveis para aumentar a produção e alimentar todos os habitantes do planeta hoje. E será possível alimentar a população mundial em 2050 praticamente sem expandir a fronteira agrícola: a FAO estima que 90% do aumento da produção necessária para alimentar o mundo em 2050 virá de ganhos de produtividade e apenas 10% do aumento da área plantada.

O que falta são recursos e decisão política que permitam aproveitar o potencial disponível. Isso reafirma a urgência de uma ação articulada para vencer a fome e o desequilíbrio ambiental conjuntamente.

Assim como Copenhague pode inaugurar um novo ciclo em relação aos objetivos de mitigar a mudança climática, a Cúpula Mundial sobre Segurança Alimentar realizada na FAO, em novembro, sugere um ponto de inflexão no caso da luta contra a fome.

O que se esgotou neste caso talvez tenha sido algo até maior. Desde os anos 80, os governos, sobretudo dos países em desenvolvimento, foram instados pela agenda do Estado mínimo a transferir a responsabilidade pelo abastecimento doméstico de alimentos às tradings internacionais, que providenciariam oferta just in time a um custo inferior ao carregamento de estoques e ao fomento local.

Políticas de desenvolvimento rural, em especial as destinadas aos pequenos produtores, foram desmontadas. Estoques de emergência de alimentos murcharam. A parcela da ajuda internacional ao desenvolvimento agrícola regrediu de 17% nos anos 80 a menos de 5% atualmente. Num mundo de oferta abundante e mercados obsequiosos, que sentido haveria em destinar recursos fiscais escassos a agricultores pobres?

A resposta veio na forma de desastre. A explosão dos preços da comida em 2008 acrescentaram um recorde sombrio à contagem dos famintos, que saltaram de 873 milhões para mais de um bilhão nos últimos dois anos.

As Metas do Milênio ficaram ainda mais distantes e a ajuda internacional, insuficiente. Diante da emergência, a resposta da reunião de Roma foi clara: é hora de reforçar o pé de apoio desenvolvimentista que compõe a estratégia de duas vias proposta pela FAO contra a fome.

A responsabilidade decisiva pela segurança alimentar deve ser reassumida pelos governos dos países em desenvolvimento. Estratégias de combate à fome e à pobreza não podem ser impostas de fora; precisam ser construídas a partir de diálogos nacionais com o apoio da comunidade internacional, quando necessário.

Nações ricas continuarão sendo pressionadas a destinar 0,7% do PIB à ajuda internacional, garantindo-se ao fomento agrícola uma fatia equivalente à dos anos 80. No entanto, nenhum outro protagonista que não os próprios governos pode preencher o duplo vazio gerado pela crise mundial: o vazio deixado pelo mito da autorregulação dos mercados e o vazio aberto pelas fraudadas expectativas na solidariedade internacional como bote de salvação para um bilhão e cem milhões de famintos.

Em 31 de dezembro de 2009, 28% das crianças dos países pobres dormirão da mesma forma que despertaram no primeiro dia do ano: enredadas na teia asfixiante de um mal que tem cura. A fricção entre o possível e o impossível no caso da fome e do ambiente argui a inércia da política e convoca a energia transformadora da sociedade para coordenar respostas que Copenhague e Roma demonstram fazer parte de uma agenda indivisível: a civilização sustentável.

José Graziano da Silva é representante regional da FAO para América Latina e Caribe


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