terça-feira, 12 de outubro de 2010

AS ELEIÇÕES E O FUTURO POLÍTICO DE MARINA

O jogo vai ser jogado debaixo da mesa"

08/10/2010

Gabriel Cohn, em sua casa: "Tivemos sorte nos últimos 16 anos. Foram 8 anos em uma faixa política, e 8 em outra, e não houve descompassos brutais em termos de políticas"

Analista sagaz da sociedade e da política brasileiras, o sociólogo Gabriel Cohn, professor aposentado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), afirma na entrevista a seguir que o voto em Dilma Rousseff "é a aceitação do governo, mesmo que quem vá continuar a conduzi-lo não tenha a mesma capacidade de adesão pessoal que o anterior". Para ele, o que está em jogo são as políticas, "não o herói que faz e desfaz", pois o governo Lula se realizou em políticas, não em "atos isolados do dirigente". "Isso permitiu a consolidação real da vida política".

A seguir, a entrevista que Cohn concedeu em sua casa, em São Paulo.

Que lição fica do primeiro turno da eleição presidencial?

Gabriel Cohn: Houve muita coisa ruim, mas havia um potencial predatório que não ocorreu. Poderia haver um vácuo aberto pela saída de Lula, que desencadearia forças destrutivas. Essa peculiar configuração que se criou, com Marina como terceira força, teve efeito benéfico. Supõe-se que haja segmentos da sociedade com adesão pessoal muito forte a Lula. O andamento da eleição sugere que a adesão não é tão pessoal. Se fosse, haveria o risco de uma orfandade que não seria coberta por Dilma e muito menos por Serra. Seria uma desorientação que poderia se transformar rapidamente em frustração, hostilidade, agressão. Isso não está acontecendo. As pessoas querem mais do mesmo. O que é perigoso é o voto personalista. Nesta eleição, não há sinal disso.

Ou seja, o voto em Dilma é no governo Lula, não em Lula?

Cohn: É a aceitação do governo, mesmo que quem vá continuar a conduzi-lo não tenha a mesma capacidade de adesão pessoal que o anterior. O que está em jogo são as políticas, não o herói que faz e desfaz. O governo Lula se realizou em políticas, não em atos isolados do dirigente. Isso permitiu a consolidação real da vida política. Tivemos sorte nos últimos 16 anos. Foram 8 anos em uma faixa política, e 8 anos em outra, e não houve descompassos brutais em termos de políticas.

Acreditava-se que a satisfação com o governo Lula seria suficiente para garantir a eleição de Dilma. Isso era falso?

"A coisa funcionou de tal maneira que, em vez de termos dois tempos de jogo, tivemos um jogo mais curto e agora a prorrogação"

Cohn: Não haver segundo turno numa eleição deste tipo é uma aberração. Quem insistiu em levantar o fantasma do primeiro turno não foi Dilma, mas Serra, por estratégia eleitoral. Acabou pegando, porque criou uma expectativa artificial. Quem disse que o PT era obrigado a ganhar no primeiro turno? As pesquisas até sugeriram que poderia acontecer. Dilma esteve perto, quase 47% dos votos válidos é muito para um primeiro turno.

O sr. acha que a campanha do segundo turno será de nível mais alto?

Cohn: Por que seria? O segundo turno é o momento em que o embate é frontal. O primeiro é que deveria ser mais alto. O triângulo formado pelos três candidatos era extraordinário. Se eles estivessem num debate denso, teria sido uma maravilha. Se não fizeram isso, por que fariam agora? O jogo vai ser jogado debaixo da mesa. Estamos na prorrogação do jogo, porque a coisa funcionou de tal maneira que, em vez de termos dois tempos de jogo, tivemos um jogo mais curto e agora a prorrogação. As torcidas ficam mais nervosas, e os times também. Acredito que o efeito seja negativo sobre nosso precioso processo de educação política. A sucessão anterior, de Fernando Henrique para Lula, foi muito civilizada. Ninguém deu canelada em ninguém. Desta vez, corremos o risco de algo que é ruim, porque reforça o lado sombrio da adesão a Marina, a posição não-política.

Marina teve votos de ambientalistas, de evangélicos e daqueles que rejeitam Dilma e Serra. Como distinguir essas tendências?

Cohn: Essas várias dimensões não se excluem. Uma parcela dessa votação vem de eleitores mais jovens, cansados da clivagem PT-PSDB e insatisfeitos com as políticas do governo, mas também com a suposta alternativa de Serra. Além do mais, são pessoas sensíveis à questão ambiental. O programa de Marina - e é Marina, não o PV - tem um aspecto pouco político. Uma mistura de principismo com religião, com apelo para setores autoritários. Estamos falando de uma pessoa, não de um partido, embora ela tivesse, sim, uma possibilidade programática à disposição. No longo prazo, o ambientalismo é questão fundamental, e Marina perdeu a oportunidade histórica de colocar a questão no debate. O que acabou pesando foi o lado "sombrio" que a apoiou. O lado "radioso" são os eleitores preocupados com questões de longo prazo. O sombrio é a desqualificação, a desmontagem do adversário, que pesou sobre Dilma e deixou Serra incólume.

O discurso conservador continua forte na política brasileira?

Cohn: Continua, mas com argumentos primários. É um sinal preocupante, mas não surpreendente. O surpreendente é a rapidez das transformações. Em prazos curtíssimos, o Brasil se transformou muito. Temos uma campanha presidencial em que um dos principais partidos apresenta uma candidata, uma mulher. É notável que a sociedade brasileira, tão conservadora, tenha absorvido a figura de uma mulher sem colocá-la liminarmente em segundo plano. Essa mulher concorre por um partido que tem 30 anos. Trata-se de uma espantosa aceleração da história. Novas forças sociais estão emergindo de todos os lados.

A distribuição dos votos do lado "sombrio" e do lado "radioso" é decisiva para o resultado. Quem pesa mais?

Cohn: A transferência é problemática para ambos os candidatos. Imagino que o lado sombrio se transfira mais para Serra. O lado radioso não gosta de nenhum dos dois, mas Dilma tem mais chance de os capturar. O que ela não conseguirá capturar são os pura e simplesmente anti-PT. É uma parcela razoável. O que pode salvá-la é que não caia como chumbo no segundo turno. Mas não vejo razão para que isso ocorra.

Marina é personagem duradoura?

Cohn: É difícil saber se ela vai se consolidar como liderança. Nesta eleição, desempenhou papel atípico, que ela mesma certamente não esperava. Galvanizou uma série de forças que não tinham para onde se orientar. É um fenômeno pessoal, não do PV. Talvez tenha papel no debate daqui por diante, mas sem capilaridade política. O espantoso é que o fenômeno Marina é fundamentalmente não político. Ela disse que governaria por princípio, não faria alianças. Em termos de jogo político, é um contrassenso. Ela se coloca à margem da política e, com isso, exerce um fascínio enorme sobre muitos que também estão à margem. É gente que tem desconfiança da política e a vê negativamente. Também há muitos que querem participar, mas acham insatisfatória a posição dos grandes atores políticos. Marina é uma espécie de candidata do mal-estar.

É sintomático de uma certa incompletude do debate?

Cohn: É sintomático de uma relação com a política em que ela não se converte no foro de colocação de propostas, da ação social. Tenho reservas às ideias que Marina professou, à sua inapetência programática. Mas sua figura foi importante. Ela pode galvanizar esse mal-estar de maneira ainda à margem do jogo político, democrático, plenamente constituído. Mas de uma maneira que não é predatória. Isso poderia ter ocorrido. Poderíamos ter um candidato totalmente caricato, por exemplo, fazendo esse papel, o que seria terrível.

Marina consegue algo que Lula também conseguia, mas nem Serra nem Dilma conseguem, que é atrair pela própria figura pessoal?

Cohn: Lula conseguiu, ao longo de experiências diferenciadas, atrair a atenção de áreas muito heterogêneas. Agora, isso que estava agregado tende a se desagregar, o que, em princípio, é bom. É a verdadeira diferenciação entre as posições da sociedade. O que não é bom é quando elas acorrem a uma personagem que, em vez de agregar politicamente, como Lula soube fazer, as conforte em seu mal-estar.

O eleitorado brasileiro ainda sente necessidade de um líder que agregue pelo lado pessoal, como Lula, Getúlio, Juscelino?

Cohn: Nem Marina exerce esse papel, na verdade. Ela traduz o mal-estar com essa ausência, mas é só. Poucos foram, por exemplo, os eleitores dela que estiveram interessados em aprofundar a questão ambiental. Agora, nem Dilma nem Serra têm a capacidade de aglutinação por uma presença poderosa. São mais, no sentido literal do termo, executivos. E isso é um problema para Serra: o que ele pode apresentar de alternativa real para o que Dilma representa? Não há como polarizar. O resultado é que o jogo se faz por debaixo da mesa, de maneira sórdida. Até dói ver um homem com o passado de Serra ficar impassível diante dos horrores que se dizem de uma pessoa que lutou a mesma luta que ele e sofreu como ele.

Grandes momentos de desenvolvimento do Brasil vieram por meio de figuras carismáticas. É possível continuar com outro perfil?

Cohn: Podemos ter continuidade, mas sem grandes saltos qualitativos. E nem se espera isso. Não é que haja a nostalgia do grande homem. O eleitor está satisfeito com a ideia de alguém trabalhando direito, sem fazer estrago. O grande salto qualitativo fica para a etapa seguinte, e será necessário ver por quais meios a nova liderança política vai galvanizar a população. Esses meios terão de ser cada vez mais sofisticados. Se tudo correr bem, o nível de exigência do eleitor vai aumentar. Ele não vai querer apelos baratos. Hoje, todos esperam que tenhamos mais do mesmo.

A posição de Marina é triunfante, mas delicada. Qualquer apoio que ela dê pode queimar a imagem apolítica que construiu?

Cohn: Vai ver é isso que está por trás dos famosos 15 dias. Nem sabemos se ela tem a capacidade de conduzir seus eleitores ao candidato que apoie. É muito improvável, porque pressupõe uma relação com o eleitor que não existe. Ela simbolizou algo em certo momento. E é fantástico ela ter conseguido condensar uma série de expectativas heterogêneas. Mas ela é um símbolo, e os símbolos não são linearmente indutores de conduta. É plausível que, ao manifestar um apoio, ela decepcione parcela importante de seu eleitorado. Marina, por si própria, não existe. Em certo momento, ela simbolizou algo difuso. Foi a referência de uma constelação complexa de expectativas. Corre o risco de desinflar, voltar a ser a simpática encantadora. Não sei se vai desempenhar um grande papel na vida pública. (DV)

Um comentário:

  1. O que pode-se concluir é que o papel da Marina no processo político futuro, será tentar construir um outro partido e um outro papel

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