quarta-feira, 4 de novembro de 2009

VALTER POMAR FALA SOBRE A POLÍTICA EXTERNA DO PT E DO GOVERNO LULA

Entrevista de Valter Pomar, secretário de Relações Internacionais do PT, para o jornal da Liderança do Partido na Câmara do Deputados


O Brasil é hoje parte da solução da crise mundial e não mais problema, como foi na gestão FHC. Qual foi a mudança essencial na política externa que mudou o papel do Brasil?


A crise mundial tem uma dimensão estrutural, ligada a dinâmica da acumulação capitalista; governos de tipo neoliberal, que se prostram frente aos "mercados", estimulam a especulação financeira e demonizam o Estado ajudaram a criar a crise e têm dificuldade de enfrentar suas consequências. A reação do governo brasileiro frente a crise foi de outro tipo: mais investimento público, mais mercado interno, mais ação do Estado e mais integração continental. Esta reação foi possível porque, desde 2005, o governo Lula fez uma inflexão desenvolvimentista, reduzindo a influência dos setores pró-capital financeiro que (infelizmente) até hoje hegemonizam nosso Banco Central. Mas desde 2003, nossa política externa já antecipava esta inflexão desenvolvimentista, especialmente num aspecto fundamental: nossa política externa não é mais linha auxiliar da política dos Estados Unidos. Num momento em que os Estados Unidos são o centro da crise mundial, isto faz toda a diferença. O México que o diga!

A forma com que o Brasil tem atravessado a crise mostra o acerto de nossa política externa, com a ampliação de novos mercados e novos parceiros?

A dimensão comercial de nossa política externa e, de maneira mais geral, os reflexos econômicos de nossa política interna, constituem um aspecto importante, quando se trata de debater nos termos em que os tucanos gostam. Ou seja: foi sob a hegemonia de nossa política, não da política deles, que o Brasil diversificou mercados e ampliou exportações. Mas o fundamental de nossa política não é o quanto conseguimos aproveitar as oportunidades de um mundo que está em crise. O fundamental de nossa política é se estamos contribuindo para criar um mundo diferente deste que está em crise. Neste sentido, a dimensão estratégica de nossa política externa está na integração, no multilateralismo, nas relações Sul-Sul, em nossa presença na África e junto aos países árabes; estrategicamente, tudo isto importa muito mais do que as relações comerciais estrito senso.

A atual crise ficou basicamente localizada nos países centrais. Em contraste, os BRICs têm atravessado a crise mundial com certo equilíbrio e exercem hoje um protagonismo impensável até há pouco tempo. Olhando retrospectivamente, há alguns anos tínhamos foros e movimentos como o dos países não -alinhados e o grupo dos 77 , que configuravam um enfrentamento Norte-Sul. O senhor podia falar sobre isto?

O epicentro da crise foi os Estados Unidos e outros países centrais. O contraste com países como a China e o Brasil é impressionante. A questão, entretanto, é que vivemos sob a égide de instituições feitas para servir aos EUA e àqueles países centrais. Logo, nosso desafio é como aproveitar este momento positivo, para incidir na construção de outra arquitetura internacional. Se não fizermos isto, os EUA e demais potências centrais vão hegemonizar a construção da ordem pós-crise e o resultado é que tudo terá mudado, mas tudo seguirá como antes. Um tema central, neste debate, é o da moeda. Enquanto o dólar for a principal moeda internacional, a economia de todos os países do mundo estará sujeita aos humores estado-unidenses.


A reforma da ONU é o principal desafio para a conformação de uma nova ordem internacional almejada há tempos por Brasil ?


Sim e não. Grandes instituições como a ONU são expressão da correlação de forças existente na época de sua criação. Esta correlação resultou de duas grandes guerras mundiais e de grandes revoluções como a Russa de 1917. Desde então e até hoje, a correlação de forças mundial mudou significativamente. Por isto a justa pressão por uma reforma da ONU. Mas até para que uma reforma seja possível, é preciso fortalecer e articular ainda mais os países e regiões que lutam por isto, sob pena de passar o que estamos vendo no FMI: todos reconhecem a necessidade de mudar, mas as mudanças são tão lentas, tão demoradas, tão minimalistas, que enfraquecem o próprio ímpeto reformista. Neste sentido, fortalecer nossa economia e nossa sociedade; ampliar nossa presença no mundo; aprofundar a integração continental, inclusive no terreno da Defesa; são passos decisivos para reformar as instituições internacionais.

No primeiro mandato de Lula houve fortes críticas da oposição à à política externa, acusada de antiamericanista, contrária à Alca, etc. Houve até quem defendesse, nas entrelinhas, uma reação militar à Bolívia no episódio Petrobras. Podia falar sobre isto?

Se dependesse da oposição de direita, o Brasil teria assinado um acordo criando a Área de Livre Comércio das Américas. Como resultado, muito provavelmente estaríamos hoje numa situação semelhante a do México. A verdade é que a oposição pensa que "o que é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil". E não conseguem imaginar que nosso país possa ter protagonismo internacional, exceto falar grosso com vizinhos pobres. Ou seja: ao invés de trabalhar para melhorar as condições econômicas, sociais e políticas da vizinhança, a oposição de direita prefere tratar bem os Estados Unidos. A verdade é que o bem-estar do Brasil está vinculado ao bem-estar da região, motivo pelo qual temos que fazer redobrar nossa aposta na integração, inclusive investindo economicamente para alavancar as economias dos paises vizinhos. Este é o caminho certo.


Lula foi chamado de "o cara" por Obama, a imprensa estrangeira tem elogiado repetidas vezes o governo brasileiro. Como o sr poderia avaliar tudo isto, já tal situação nunca ocorreu em nossa história ?

Bush tinha ótimas relações pessoais com Lula, Obama vai no mesmo caminho. Os Estados Unidos sabem da importância de ter boas relações com o Brasil. Mas isto não significa que eles compartilhem nossos pontos de vista. Nem que deixem de jogar bruto, quando se sentem ameaçados. Vide as bases militares na Colômbia, a IV Frota, o golpe em Honduras, a continuidade das guerras do Afeganistão e do Iraque, o persistente bloqueio contra Cuba.

Como o sr avalia as perspectivas de relações Brasil/EUA agora?

Os Estados Unidos, apesar de estarem experimentando um declínio em sua hegemonia, seguem sendo o maior poder militar, midiático e econômico do mundo. E vão continuar assim por mais algum tempo. Assim, é preciso conhecer mais os Estados Unidos, incidir na sua política interna e manter uma atitude firme frente a seu comportamento internacional, que nossos velhos chamavam muito corretamente de "imperialistas". Evitando, sempre, levar a briga para o terreno que os gringos preferem: a guerra.

E quanto às relações Brasil -China, são de fato estratégicas? Os dois países podem aprofundar o relacionamento, mesmo com as exportações chinesas tornando-se cada vez mais ameaçadoras aos interesses brasileiros?

Comércio é um aspecto das relações internacionais, mas o mais importante em nossa relação com a China está no papel que este país vai jogar ao longo de todo o século XXI. Por isto temos que aprofundar nossas relações com eles.

O que podemos esperar do relacionamento com a Rússia, Índia e África?

Com Índia e Rússia, buscamos algo semelhante ao que buscamos com a China: construir relações entre os grandes Estados periféricos, especialmente tendo em vista construir uma nova arquitetura internacional. No caso da África, é muito mais complexo. Temos relações históricas com este continente e podemos cumprir um papel importante, totalmente diferente daquele tradicionalmente desempenhado por outros países, a saber: saque e destruição.

Em termos de América do Sul, qual o balanço que faz dos últimos anos do projeto de integração que o governo Lula transformou em bandeira? E o Mercosul?

A integração latino-americana, começando pela integração da América do Sul, é indispensável ao êxito do nosso projeto naciona e internacional. A ampliação dos laços, inclusive comerciais, entre os países da região constitui um indicador entre vários do êxito deste projeto. Claro que há problemas e dificuldades, inclusive porque operamos frente a uma realidade que herdamos de governos e de épocas que nos antecederam. Mas o fundamental é observar a marcha: a ampliação do Mercosul, agora com a iminente adesão plena da Venezuela; e a constituição da Unasul são prova disto.

Podia falar sobre a importância da área de defesa nesse cenário de nova inserção internacional do Brasil? Ainda sobre isto, qual a importância da criação da Unasul e, por extensão, do Conselho de defesa Sul-americano?

A crise econômica mundial, associada ao declínio da hegemonia dos Estados Unidos, sem que haja alternativas visíveis a curto prazo, indica que viveremos um período mais ou menos largo caracterizado pela instabilidade. Atuar nestas condições supõe ter meios de proteger os interesses nacionais, por isto a importância da política de Defesa e da adequação das forças armadas. Agora, nossa política de Defesa trabalha busca a integração entre os países vizinhos. Não queremos bases estrangeiras nem conflitos militares na região. A criação de um espaço para discutir e coordenar uma política sul-americana de Defesa surge daí. Nada disto é fácil, até porque ainda existem na região governos alinhados com os interesses dos Estados Unidos.


A respeito do IV Congresso do PT para atualizar a política de relações internacionais do Partido, quais os temas serão prioritários?

No III Congresso, nossa política de relações internacionais foi aprovada por unanimidade. Isto dá segurança e consistência para o trabalho desenvolvido. Cabe ao IV Congresso, penso eu, atualizar e complementar o documento, especialmente nos seguintes temas: as relações com Estados Unidos, China, Índia e Rússia; nossa política para África; a Unasul, o tema da Defesa e o Parlasul; a crise mundial e as perspectivas de médio prazo; o funcionamento e a estrutura da própria secretaria de relações internacionais; e o duplo movimento de nossa política internacional, por um lado com os partidos com os quais temos proximidade ideológica, por outro lado uma política que podemos chamar "de Estado", que implica em relações com partidos com os quais não temos identidade programática.

As relações internacionais deviam ser mais bem acompanhadas pelos partidos políticos e, no caso do PT, pela militância?

O Brasil é um país muito grande e complexo; além disso, nossa história não é de integração regional. Por isto, o povo brasileiro não tem ainda uma cultura internacionalistas e latinoamericana. Em menos escala, isto atinge a todos os partidos, inclusive os de esquerda. Mas isto está mudando, seja em decorrência das transformações mundiais; seja em decorrência de nossa própria atuação, especialmente a partir de 2003; seja em decorrência da oposição de direita, que transformou a política externa do governo Lula em alvo. Nosso esforço, ainda mais neste contexto, é fazer com que toda a militância petista tenha conhecimento e se aproprie das diretrizes gerais de nossa política internacional.

Como deverá ficar o relacionamento do PT com outros partidos de esquerda e progressistas da América Latina?

Nisso estamos bem, mas ainda é preciso muito mais. Nossa prioridade é o Foro de São Paulo, mas também participamos de outras iniciativas. O ideal é que a SRI crie um "Departamento América", para dar um acompanhamento mais cotidiano e presente aos temas da região.

Nenhum comentário:

Postar um comentário