terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

O CARNAVAL DO RIO E SUAS FALSAS POLÊMICAS

O mito da corda nos blocos e o carnaval de rua do Rio

Com a ressurreição do carnaval de rua do Rio de Janeiro, com destaque para as zonas sul e centro da cidade, já que no subúrbio a rua sempre foi o espaço privilegiado dos foliões, em detrimento dos clubes, retoma-se uma falsa polêmica sobre a utilização das cordas, supostamente ou não, separando os foiões entre duas classes: os de primeira, no interior das cordas e os de segunda, fora delas. Como pano de fundo disso a comercialização do cortejo carnavalesco.

O carnaval, uma tradição européia, haja vista que os persogens-símbolos são o pierrot, o Arlequim e a Colombina, originários da comédia italiana e o Momo, inspirada no bufo ator de proveníência portuguresa, trazida pelas primeiras caravelas que aportaram o Brasil, mas que alguns estudiosos registram o surgimento anterior a era cristã, em períodos mais remotos, só a si conferiu contornos brasileiros e cariocas com a sua apropriação pelas classes menos favorecidas, que incluia negros-escravos e brancos de estratos sociais médios e pobres da população brasileira.

O marco disso é o surgimento do "Zé Pereira" ( o tocador de bumbo), em meados do século 19 - para alguns estudiosos, esse era o nome ou apelido dado ao cidadão português José Nogueira de Azevedo Paredes, supostamente o introdutor no Brasil do hábito português de animar a folia carnavalesca ao som de bumbos, zabumbas e tambores, anarquicamente tocados pelas ruas. O surgimento de tal personagem no cortejo carnavalesco abriu espaço para o advento da cuíca, do tamborim, do reco-reco, do pandeiro e da frigideira, instrumentos que acompanhavam os blocos de 'sujos' e que hoje animam as nossos blocos escolas de samba.

Se as organizações carnavalescas chamadas grandes sociedades, constituídas a partir de clubes fechados, remontam uma fase elittista e de forte influência do império no carnaval, o surgimento dos cordões, ranchos e mais tarde blocos e escolas de samba, sinalizam a popularização da festa no início do século vinte e a feição definitiva do carnaval que ora se assiste e participa. Uma coisa em comum a esses dois períodos carnavalescos era a sátíra e crítica política aos governantes e aos costumes da época, tradição que se mantém nos nossos dias.

Esse breve e inconcluso histórico serve para destacar que o carnaval, na embocadura brasileira e, principalmente, carioca, já que ele foi trazido para o Brasil pela Corte Imperial, instalada no Rio de Janeiro, embora disseminado por todo o país, é uma festa que ganhou e consolidou raizes eminente populares, e que algumas de suas tradições, como não poderia deixar de ser, remontam de tal origem. Uma delas, a introdução das cordas no entorno dos blocos, que traduziam duas necessidades:

A primeira, uma opção defensiva das organizações carnavalescas contra a discriminação e o preconceito que as elites sociais do início do século passado nutriam em relação ao carnaval, tratadas como bandos de arruaceiros espalhados pelas ruas de forma desorganizada. Simbologia aplicada aos cordões, que apesar do nome não eram cercados por cordas e que, por resultado de tais pressões, foram substituidos pelos blocos mais organizados, o uso de cordas no seu entorno foi uma saída criativa para fugirem da pecha de arruaceiros que as elites impingiam. O vocábulo, bloco, algo blocado, por si só encerra uma noção organizativa.

O que não impediu a disseminação espontânea dos chamados blocos de sujo, criados pelos moradores de uma mesma rua ou bairro que se organizavam para brincar o carnaval e exibir as sua fantasias. A espontaneidade, a territorialidade e o uso de fantasias, produzidas ou criativamente inventadas, - o Cordão do Bola Preta, que nunca foi cordão nos termos em que foi criado esse tipo de organização carnavalesca, mas sim bloco, talvez seja a melhor expressão disso nos tempos atuais -, tanto nos blocos organizados quanto nos de sujo, aliás, eram marcas indeléveis do carnaval. Mesmo que com o sucesso de muitos deles, como é o caso dos cinquentões Cacique de Ramos ou do Bafo da Onça, ou do Bohêmios de Irajá, que daquí a pouco entra na casa dos cinquenta, recebessem adesões de foliões do fora do seu território original, em geral vinham de territórios circunvizinhos.

A segunda, deve se ao fato de nos bairros do subúrbio e no centro da cidade (na Avenida Rio Branco), uma das principais atrações do carnaval eram os desfiles competitivos de blocos - no caso da Rio Branco chegavam a desfilar escolas de samba de grupos de acesso -, onde estes se organizavam feito as escolas de samba, em temas, alas e fantasias, e a utilização de cordas era expediente necessário para garantir a fluência dos desfiles, a segurança de crianças frequentes nestes blocos que guardavam no seu interior vigorosos vínculos familiares e a garantia que foliões não integrantes, portanto, não fantasiados, atrapalhassem a representação alegórica e plástica dos desfiles e influenciasse negativamente os jurados da competição. Apos o desfile, como hoje ainda ocorre, os foliões seguiam o cortejo atrás das respectivas baterias. E assim se sucedia a cada passagem de blocos.

O cerceamento de liberdade de manifestações do período militar, erigido a partir de 1964, está na origem da grande lacuna que o carnaval de rua da cidade experimentou. Nas zonas sul, centro e norte, onde se concentra o contingente populacional de classe média à época mais crítico ao regime, ele foi confinado aos grandes bailes fechados, portanto, mais suscetíveis a algum controle, onde em alguns (não no Tijuca e nem no Municipal, é claro) prosperava mais a libido e o hedonismo, destacados nas revistas da época, de forma mais ou menos apimentadas, dependendo do estilo editorial, e algum tempo depois em algumas emissoras de TV, do que a crítica a qualquer coisa, uma marca constituinte do carnaval do Rio, mas indesejável para aquele período. De vulto só existia no Centro o centenário Cordão do Bola Preta e na zonal sul algumas bandas em Copacabana e a Banda de Ipanema. Esta criada justamente no ano do Golpe Militar, por Albino Pinheiro e pela turma de intelectuais e jornalistas que fundaram o Pasquim, que viria a se tornar o mais importante jornal de resistência da época, mas que não ficou imune a pressão militar, Os agentes militares do exército pensavam que o seu lema, Yolhesman Crisbelles!, era uma crítica disfarçada à ditadura. Mas a frase não significava absolutamente nada.

Já no subúrbio, isto é, nas regiões menos dinâmicas economicamente da cidade, o ocaso do carnaval de rua do Rio, por outro lado, mas não dissociada do contexto político, porque resultante a forte concentração de renda que marcou aquele período, guarda relação direta com a decadência econõmica da cidade, agravada pela fusão entre o Estado da Guanabara e do Rio imposta pelo regime em 1974. Nessas regiões suburbanas a questão econômica foi mais decisiva, porque em geral quem contribuia financeiramente para aqueles blocos eram pequenos comerciantes e empreendedores locais, além da cotização entre os seus integrantes.

Com a referida decadência que afetou diretamente a renda dos seus financiadores, o viço daqueles cortejos carnavalescos suburbanos sofreu um duro golpe, malgrado vários blocos conseguissem se manter. Mas o Bafo da Onça, por exemplo, ficou anos sem desfilar ou desfilou como o Cacique e o Bohêmios em condições precárias. O que restringiu o carnaval do Rio, no subúrbio, a bandas e "atrações", algumas de qualidade duvidosa, que tocavam em coretos armados para ocasião, em geral negociados junto ao poder público por políticos locais, que tratavam aqueles bairros como capitanias hereditárias a serviço da reprodução dos seus mandatos. O Chaguismo foi a maior expressão deste expediente fisiológico.Mas o carioca é de rua, queria brincar carnaval e isso é o que importava. Vez por outra inventava um bloco, que não durava até o carnaval seguinte

A retomada do carnaval de rua do Rio, no centro e zona sul, coincide com anuncio da abertura lenta, gradual e segura do governo Figueiredo (1979-1985), resultaltado de uma série de circunstâncias-pressões políticas e econõmicas, que não é o objetivo deste artigo analisar, quando surge o Bloco do Clube do Samba, em 1979, (clique aqui se quiser saber mais sobore o bloco), mesmo ano em que foi sancionada a Lei da Anistia.

Fundado pelo saudoso João Nogueira e outros sambistas e compositores como Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro, cantoras, como a divina Eliseth Cardoso, Clara Nunes, Beth Carvalho e Gisa Nogueira, e intelectuais, como o jornalista Sérgio Cabral, a eles se associaram outros figuras de destaque da cultura e intelectualidade cariocas e vários militantes que retornaram ao Brasil anistiados, como Nelson Rodrigues Filho, que alguns anos depois fundou o Bloco do Barbas. Eram desfiles aguardados e memoráveis as sextas e terças-feiras de carnaval na Av. Rio Branco, cujos sambas se sintonizavam aos grandes temas da época. "O Vovô Sobral (referência ao advogado Sobral Pinto) falou, que o voto direto é um direito do trabalhador ...", composto por João Nogueira com referência a campanha por "Diretas Já".

Na esteira dessa retomada foram, ano após ano, surgindo blocos como o Barbas e o Simpatia, no mesmo ano - este, também resultado de uma certa percepção de esgotamento da Banda de Ipanema, e que no bairro cabia mais um bloco) o Suvaco do Cristo, Carmelitas, o Bloco de Segunda e por aí a fora. Enquanto naquelas regiões da cidade, menos dinâmicas economicamente e com menos apelo midiático, a crise do carnaval de rua do Rio ainda não foi superada. Embora a ela resistam centenas de blocos, que desfilam e surgem a cada ano no carnaval. Mas, com efeito, não há um folião que participou da fundação daqueles blocos da zona sul e do centro, no caso das Carmeltas, que não tenha se inspirado e desfilado uma vez sequer no Clube do Samba, eu tive a felicidade de participar da maioria dos desfiles.

Mas falar do Clube do Samba no presente artigo, serve entre outras coisas para desvelar alguns mitos, disseminados por conta do carnaval de rua de Salvador, que por muito tempo junto aos desfile das escolas de samba do Rio, foi refúgio de parcela dos folióes cariocas: ora dos que possuiam recursos para viajar para dele participar, ora para desfilar em algumas das escolas, ou para os que se contetavam em assitir pela televisão. Duas manifestações carnavalescas com um nítido e cristalino intuito de retorno comercial. Estes sim, dividem foliões entre de primeira e segunda classes. Onde os muros do sambódromo ou as cordas que cercam os mais famosos blocos e trios elétricos de Salvador, são os símbolos mais aparentes, mas são resultado e meio, e não causas.

O Clube de Samba que cumpriu papel decisivo na retomada do carnaval de rua do Rio no Centro e na Zonal Sul também usava cordas, o que gerava irritação em foliões que se moviam para os seus desfiles. Em mim, inclusive. Mas pensando um pouco melhor passei a olhar a situação por um outro viés. Até porque um episódio (como um fenômeno) não deve ser encarado a partir de uma única dimensão. Passei a encarar não como uma distinção, na medida em que oferecia opções ao folião, mas como o resgate de boas tradições.

Ele, João Nogueira, seu fundador. carioca do Méier, certamente por sua longa vivência entre a infância e adolescência nos carnavais do subúrbio, onde o uso de cordas no entorno dos blocos era um expediente natural, era coerente com a sua história, por mais que isso causasse altercações: só desfilava quem comprava a camiseta, o que representava adesão e compromisso com a sustentação e viabilidade do bloco - que num momento da nossa história foi um instrumento de resistência ao regime militar -, o antigo expediente da cotização, que inclusive contribuia para ajudar a nele desfilar aqueles que não tinham condições materiais de adquirir uma camiseta, mas que mantinham relações umbilicais com o bloco, ou, melhor ainda, podia desfilar também quem trajava uma fantasia, fosse qual fosse, outra tradição do carnaval carioca, que ainda hoje não foi retomada na sua devida dimensão. Mesmo que parecesse um contra-senso o uso de cordas num bloco que ainda desfilava sob regime militar.

Portanto, trata-se de uma falsa e superficial polêmica o debate sobre o que representa o uso de cordas nos blocos de rua do carnaval carioca, enquanto desvios dos rumos do carnaval, cotejados aos interesses comerciais de alguns blocos ou bandas no Rio e, principalmente, em Salvador, onde no carnaval oficial - já que há um circuito paralelo e espontâneo que não aparece na mídia - tal situação é elevada ao paroxismo. Chega a ser risível as críticas oriundas da prefeitura a tal expediente, quando ela mesmo impõe determinados patrocínios a ambulantes, blocos e suas associações. O Monobloco não tem cordas, mas já nasceu com todo um aparato midiático a lhe conferir sustentação e desdobramento comercial. Eu não critico, pois se conta com adeptos é porque expressa uma demanda de um certo perfil de foliões. Quem não gosta, não é obrigado a participar. Mas fora de lugar ainda é quando se critica o uso de cordas tão-somente para proteger as baterias e os carros de som dos cortejos carnavalescos, mesmo que eventuamente esteja por alí alguém que não tem nada a ver, mas que se acha ou é considerado famoso ou especial. Isso e coisa para os blocos administrarem. Como disse recentemente o Paulinho da Viola, o carnaval atual não é pior e nem melhor do que o do passado, os tempos é que são outros.

O traço espontâneo, popular e a vitalidade do carnaval de rua do Rio, que num determinado período de exceção da nossa historia foi abalado, num ambiente democrático certamente vai encontrar os seus atalhos com ou sem cordas, para resistir a toda a sorte de interferências indevidas, seja por motivações político-eleitorais, seja pelas motivações comerciais e mercantis. Inclusive com inteligência e sem sectarismos pode retirar proveito, e esta retirando, de tais interferências. Basta assistir a proliferação de blocos que ocorre e que vão sair a despeito da autorização da Prefeitura do Rio. É o direito a rebelião e a livre organização consignado na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

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