O condomínio peemedebista
As polarizações artificiais que travam o debate público
MARCOS NOBRE*
NÃO FAZ MUITO TEMPO, uma pessoa podia dizer que não tinha posição política ou preferência partidária definida. Mas sabia responder com rapidez à pergunta se era "contra" ou "a favor" do PT. Mesmo que as coisas hoje não se passem exatamente assim, isso diz muito sobre a história política recente.
Engenheiros políticos sempre desenham paraísos partidários em que o país ganha, afinal, um sistema nacional e polarizado. A mais recente tentativa foi obra da ditadura militar (1964-1985), que, de cima e na marra, pretendeu produzir um sistema bipartidário de tipo "oposição" versus "situação", MDB versus Arena, nas siglas vigentes até o final da década de 1970. Esses reformadores de gabinete e de caserna pretenderam, com isso, superar a fragmentação de interesses e as desigualdades regionais e criar algo como a verdadeira unidade de uma nação.
O resultado ruinoso é conhecido. O que é bem menos conhecido é o papel que teve esse projeto autoritário na moldagem da cultura política brasileira a partir da democratização dos anos 1980. Uma cultura que, no seu todo e em sua história, chamo de "peemedebismo". Não porque esteja restrita ao PMDB simplesmente, mas porque foi esse partido que primeiro, ainda nos anos 1980, a moldou e consolidou.
DItadura Apoiando-se na unidade contra o inimigo externo dada pela ditadura, o MDB (depois PMDB) produziu, por vocação e por necessidade, um modelo de gerenciamento de interesses adaptado à desigualdade e à fragmentação regionais. Não foi o sonhado partido uniforme e homogêneo dos reformadores ditatoriais, mas aquele que trouxe para dentro de si a diversidade e a fragmentação. Em suma, um partido nacional à brasileira.
A coisa funcionou mais ou menos assim. Todo e qualquer grupo de interesse tem entrada franqueada no partido. Se conseguir se organizar e se fortalecer como grupo organizado, ganha o direito de pleitear o seu quinhão dos fundos públicos. E, ao mesmo tempo, ganha direito de veto sobre questões que afetem diretamente seus interesses.
Com o declínio da ditadura, o pressuposto do modelo passa a ser, evidentemente, que o partido esteja permanentemente no poder, seja qual for o governo. E a consequência é a de uma política de conchavo, de gabinete, ou, quando muito, exclusivamente partidária. O debate público deve ser evitado ao máximo e, se for inevitável, deve conduzir a "clinchs" políticos, no qual prevaleçam os direitos de veto dos diferentes grupos de interesses encastelados no partido.
PT Se o domínio do peemedebismo tivesse sido completo, era assim que as coisas teriam se passado. Mas não foi isso exatamente o que se passou nas décadas de 1980 e de 1990. E só não foi assim porque, nos estertores da ditadura, surgiu o PT, um partido que não aceitava operar com base nessa lógica.
O PT pretendia ser um partido nacional. Pretendia unificar o país a partir de baixo, dos movimentos sociais e sindicais que combatiam a desigualdade em suas diversas formas. A ideia era simples e direta: a unidade própria de um país só pode ser alcançada se forem eliminadas as desigualdades. E isso inclui combater um sistema político que busca apenas acomodar e gerenciar as desigualdades, como é o caso de um sistema dominado pelo peemedebismo.
Foi assim que uma transição morna para a democracia, dirigida pelo condomínio ditatorial e pactuada de cima por um sistema político excludente, deu de cara com movimentos e organizações sociais, sindicatos e manifestações populares que não cabiam nos canais estreitos da "abertura política" de então. Como não conseguiu administrar todos esses movimentos segundo a estrita cartilha peemedebista, o sistema político encontrou uma outra maneira de neutralizá-los.
Confrontada, por exemplo, com um volume inédito de participação da sociedade organizada, a Constituinte recebeu e aceitou muitas das demandas e as inscreveu na Constituição de 1988. Mas, ao mesmo tempo, fez com que esses dispositivos constitucionais dependessem de leis complementares para serem efetivamente implementados. Ou seja, com uma ou outra exceção notável (a criação do SUS à frente), tomou de volta para si o poder de decisão de fato.
ENERGIAS REPRESADAS Porém, mais uma vez, a história não acabou aí. Com o acesso ao sistema político severamente limitado ou simplesmente bloqueado pelo peemedebismo dominante, as energias de transformação social represadas foram se acumulando e, progressivamente, passaram a se concentrar no PT.
No momento em que, com apenas 16,08% da votação, Lula conseguiu ir para o segundo turno na eleição presidencial de 1989, esse movimento de concentração de forças no PT se intensificou ainda mais. É verdade que, depois disso, ocorreu um relativo declínio da militância de base característica dos anos 1980, mas a "profissionalização" do PT da década de 1990 substituiu, de certa maneira, a militância espontânea de massa da década anterior, com a fixação, na cultura do partido, das mais destacadas demandas históricas de movimentos sociais e populares.
Nesse momento, o PT se tornou o líder inconteste e exclusivo da esquerda. E o fiel depositário das energias utópicas de transformação em larga medida barradas pela peemedebização do sistema político.
Com o declínio do PMDB, no final da década de 1980, o país flertou primeiro com o seu oposto, com o cesarismo alucinado de Fernando Collor. Se, no entanto, depois do impeachment, em 1992, voltou à lógica peemedebista dominante desde a democratização, a partir dali, o modelo inaugurado pelo PMDB já não pertencia mais somente àquele partido, mas tinha se tornado o padrão de organização e de ação de todos os partidos brasileiros.
EXCEÇÃO Todo partido brasileiro pretende, no fundo, ser um grande PMDB. (Dando um salto na história em direção ao momento atual, basta ver -para falar apenas dos exemplos mais vistosos- como se comportam exatamente segundo essa lógica partidos aparentemente tão diferentes como o PSB ou como o novo PSD). A exceção da história naquele momento foi, mais uma vez, o PT.
Olhando assim as coisas, a reorganização política do Plano Real funcionou porque e enquanto a oposição era liderada pelo PT. A acumulação de energias utópicas de transformação social fez do PT o único polo do sistema político capaz de sobreviver à margem do peemedebismo dominante.
Um importante ministro do primeiro governo FHC, Sérgio Mota, disse que a coalizão do Plano Real tinha um projeto de poder para 20 anos. Como se sabe, esse projeto não vingou, e Lula foi eleito presidente em 2002. (Aliás, o próprio Lula repetiu recentemente a frase azarada de Sérgio Mota, prevendo 20 anos de poder para o PT). Mas, no fundo, o projeto pressupunha que o PT, pela sua própria história, estaria impedido de realizar o pacto com o peemedebismo.
MENSALÃO Estava longe de ser uma suposição sem fundamento. Mesmo depois de ter chegado à presidência, em 2002, Lula não conseguiu assumi-la de fato antes que o episódio do mensalão, em 2005, tivesse afastado figuras históricas do PT, deixando-lhe o caminho livre para moldar o governo à sua maneira e feição.
Foi apenas após o mensalão que Lula realizou de fato o pacto com o peemedebismo. Mas foi também nesse momento que ficou claro que o sistema político em dois polos instaurado depois do Plano Real só poderia funcionar se um partido como o PT estivesse na oposição. Apesar de ter conseguido se colocar, durante o período FHC, como vanguarda do peemedebismo, o PSDB mostrou que sua lógica não difere, no essencial, dessa cultura política dominante.
O país queimou toda a energia de transformação que se acumulou no PT em décadas de luta social. Inicialmente, para organizar o sistema político em dois polos, deixando ao PT o papel de sustentar a oposição com base na sua sólida organização social e sindical.
NOVO CONSENSO Em um segundo momento, com a chegada do PT ao poder, para incluir no novo consenso social o princípio de que o crescimento econômico não deve deixar pessoas para trás, sem um mínimo de proteção social universal e sem um mínimo de efeitos de redistribuição de renda em favor dos mais pobres.
Essa é uma diferença considerável com relação ao consenso social anterior, chamado habitualmente por "nacional-desenvolvimentismo" e que se diz ter vigorado entre as décadas de 1930 e 1980, a maior parte do tempo sob regimes ditatoriais. Era um modelo de desenvolvimento e de sociedade que se sustentava na ideia de um crescimento econômico contínuo, com o qual se alcançava uma melhoria igualmente contínua de padrões de vida, mas, em suas versões autoritárias pelo menos, sem preocupações redistributivas.
Em vista das injustiças históricas do país, certamente não foi pouco fincar no novo consenso brasileiro cláusulas de solidariedade social e de ampliação da participação e da representação políticas. Conjugadas a uma conjuntura internacional extremamente favorável e a taxas de crescimento econômico significativas durante o período Lula, repetidas em anos consecutivos, essas novidades trouxeram também o ressurgimento no horizonte de um país com algum futuro, com a perspectiva de que a geração seguinte viverá melhor ou pelo menos tão bem quanto a anterior.
Mas esse processo já se realizou. O pacto do PT com o peemedebismo já está consolidado. E não há, de fato, oposição.
DIREITA E ESQUERDA Traduzido em termos da divisão política em posições de direita e de esquerda, o panorama resulta no seguinte. A diluição transformadora do PT marcou de tal forma o novo consenso social que as bases do discurso e da prática da direita democrática se perderam, pelo menos por ora. Como a peemedebização historicamente sempre jogou a seu favor, a direita perdeu inteiramente o pé diante de uma ocupação pela esquerda dessa cultura política. Ainda não conseguiu fincar posição para além de setores do mercado financeiro.
Do lado da luta por um aprofundamento das transformações sociais iniciadas pelo período Lula, a situação é difícil pela razão oposta: toda a energia de transformação acumulada parece já ter sido gasta. Se a ocupação pela esquerda do peemedebismo permitiu avanços, é essa mesma cultura política que tende, a partir de agora, a travar novas conquistas democráticas.
As alternativas políticas e as perguntas que se colocam hoje são bem pouco simples. E as possibilidades de ação dependem em muito de uma boa compreensão da complexidade do momento atual. Por exemplo: a atual posição de síndico do condomínio peemedebista ocupada pelo PT é suficiente para manter e aprofundar as conquistas sociais do governo Lula?
Ou, ao contrário, tende com o tempo a se diluir por completo? O que, por sua vez, pressupõe que já se tenha uma resposta à pergunta: há alternativa ao peemedebismo? Ou a política estaria limitada à sua ocupação, seja pela esquerda, seja pela direita? Ou ainda: é possível, em condições como essas, não só crescer economicamente com alguma diminuição da desigualdade, mas fazer avançar a democracia?
GUERRA POLÍTICA Por mais difícil que seja responder a essas perguntas, há pelo menos algumas constatações incontornáveis. Começando por um debate público e por um sistema político que não produzem diferenciações reais, mas tão somente uma guerra política de posições em que ninguém sai de fato do lugar.
Uma guerra em que a eventual conquista de uma trincheira significa ganhar poder de mando sobre seu pequeno território e poder de veto sobre iniciativas alheias que ameacem essa trincheira.
Essa é também a razão pela qual a presidente é vista como alguém que "toca o expediente". Por mais que o jogo seja complicado e esteja longe de estar ganho para a coalizão no poder, o governo Dilma lida agora com alternativas de gerenciamento do novo consenso brasileiro e não mais com sua transformação.
Um contexto em que se torna difícil até mesmo caracterizar o voto dado a José Serra ou a Marina Silva nas eleições presidenciais de 2010 como um voto de "oposição". Um contexto em que à "oposição" não resta senão aguardar, impotente, que um fracasso do governo lhe faça cair no colo o poder federal.
Não é à toa, portanto, que a sensação de um divórcio entre sociedade e sistema político é generalizada. O sistema político fechou-se para a invenção e para a inovação. Só um sistema político poroso à sociedade é levado a elaborar demandas de novo tipo, reivindicações e formas de representação que não constem do rol hoje determinado por ele mesmo como aceitável.
ILUSÃO GERENCIAL Alcançar uma democracia melhor do que se conseguiu construir até agora não pode ser um problema que se limite ao fracasso ou ao sucesso do governo em conseguir produzir crescimento econômico com inflação sob controle. Ao contrário da ilusão gerencial que tem o PT de ter sob sua supervisão e controle os movimentos sociais, novas energias sociais estão sendo produzidas e mobilizadas, sem que tenham o grau de organização que se está acostumado a ver, sem que estejam sendo devidamente processadas pelo sistema político.
Um potencial em larga medida invisível e que se manifesta em episódios que não cabem nos quadros gerenciais habituais, como se pode dizer de um acontecimento tão surpreendente e até hoje tão mal explicado como a revolta dos trabalhadores no canteiro da usina de Jirau, em meados de março.
Ao contrário do que acredita o condomínio peemedebista, crescimento econômico e melhoria dos padrões de vida não são garantia de que não surgirão protestos de importância fora dos enquadramentos habituais. E tentar reduzir sem mais a complexidade da situação a um posicionamento a favor ou contra um governo, a favor ou contra um partido, é optar por manter tudo como está. É aceitar a armadilha do condomínio do peemedebismo.
SÍNDICO Porque o peemedebismo é, na sua essência, conservador em todos os âmbitos. E opera com base em uma máxima que lhe garantiu a longa sobrevivência: sempre que algo dá errado, joga toda a responsabilidade da administração do condomínio nas costas do síndico. Por isso, o peemedebismo se deu mal no final da década de 1980: porque era síndico de seu próprio condomínio.
É justamente para não cair na tentação de querer ser novamente síndico que, depois do rearranjo do Plano Real, o PMDB nunca tem candidato a presidente e sempre está no poder, seja qual for o governo. O PT, como atual síndico do condomínio peemedebista, se apresenta como garantia e vanguarda de um processo que, em grande medida, não está de fato em suas mãos.
Não deixa de ser paradoxal que as polarizações pareçam tanto mais acirradas quanto menos o sistema político está de fato polarizado. A própria campanha presidencial de 2010 foi expressão de polarizações artificiais, cujo efeito foi simplesmente o de reforçar uma guerra de posições montada em trincheiras que ficam longe dos campos onde se travam hoje as batalhas decisivas.
Se o novo modelo de desenvolvimento e de sociedade hoje consolidado representa um inequívoco avanço relativamente à histórica iniquidade do país, a democracia brasileira só alcançará novos avanços a partir de agora se, de alguma maneira, começar a acertar contas com o peemedebismo. Com que forças e com que meios, só a invenção democrática poderá dizer. O que é possível dizer é que o primeiro passo para isso é destravar o debate público das polarizações artificiais e encontrar novas, reais e acirradas polarizações.
Com o acesso ao sistema político limitado pelo peemedebismo, as energias de transformação social represadas passaram a se concentrar no PT
O modelo inaugurado pelo PMDB já não pertencia mais somente àquele partido, mas tinha se tornado o padrão de organização e de ação de todos os partidos
O país queimou toda a energia de transformação do PT, deixando a este o papel de sustentar a oposição com base na sua sólida organização social e sindical
Como a peemedebização historicamente sempre jogou a seu favor, a direita perdeu o pé diante da ocupação pela esquerda dessa cultura política
A democracia brasileira só alcançará novos avanços se começar a acertar contas com o peemedebismo; para isso, é preciso achar novas polarizações
*Marcos Nobre é professor do Departamento de Filosofia da UNICAMP e pesquisador do CEBRAP
Texto originalmente públicado no Caderno Ilustríssima da Folha de São Paulo, em 15/05/11
quarta-feira, 25 de maio de 2011
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